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Memórias da Covilhã

Memórias da Covilhã

No início da década de sessenta, ali na Covilhã - A Covilhã e os seus esbirros

04.02.18, Memórias

 

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CARLOS ESPERANÇA

Não sei como era a Covilhã em 1186, elevada a vila por foral de D. Sancho I, nem em 1763 quando o Marquês de Pombal ali criou a Real Fábrica de Panos que havia de lhe traçar o perfil industrial e torná-la um local de misérias e grandezas conforme as crises cíclicas a que ficou condenada. Das grandezas fruíam os industriais que, duas gerações depois, abriam falência enquanto outros surgiam para recomeçar o ciclo. Das misérias foram vítimas gerações de assalariados que ora fugiam das aldeias em busca do magro salário na indústria, ora regressavam à fome e às courelas em Boidobra, Peraboa, Ferro, Verdelhos, Orjais, Canhoso, Cortes, Teixoso ou Casegas.

 

Era este revezamento entre o campo e a fábrica que não deixava enraizar a consciência proletária mas atraía para a política alguns rurais feitos operários. Descrito por Ferreira de Castro, em «A lã e a Neve», não creio que Horácio, pastor, fosse o paradigma dessa alternância que dos rurais fazia operários têxteis e os reenviava para as aldeias e para a enxada quando a crise de novo se instalava. Não era o amor à terra que os movia, eram as fábricas que os expulsavam.

 

As pessoas fazem as cidades mas estas são as suas circunstâncias, que as moldam e lhes imprimem o carácter, os hábitos e o gosto. Na cidade não havia a courela que dava aos operários a ilusão de terem garantidos os alimentos e a casa de telha vã que os abrigava da chuva e da neve, e a vida na cidade é sempre cara para quem não lhe pode fazer face. Por isso caminhavam horas antes de iniciarem longos turnos em alguma das numerosas fábricas, que seguiam o leito das ribeiras Carpinteira e Degoldra, que enchiam de ruído a cidade que sobe pela encosta no sueste da serra da Estrela.

 

Em 1961 arrastava-se no Tribunal da comarca a falência da Fábrica Alçada, outras agonizavam, e preparava-se para laborar a Nova Penteação que, com a evolução dos teares mecânicos e a consequente redução de mão de obra, havia de durar décadas até seguir o destino a que, também ela, não seria poupada.

 

A Covilhã reciclava o trapo e tecia com fios de lã o estambre, com variados padrões e cores, saído da arte e engenho dos debuxadores. O delegado do Instituto Nacional de Trabalho nunca negava aos patrões o aumento das horas de laboração, se as encomendas cresciam, nem as autorizações para despedir, quando diminuíam, nem as prendas que, em qualquer caso, sempre recebia.

 

O Têxtil e o Avante acusavam o delegado do ministério das Corporações dos subornos e acicatavam a revolta, a polícia espiava, o tenente Gaspar assustava a pequena burguesia na esquadra da PSP, a PIDE prendia os comunistas, mas era no interior das fábricas que a revolta crescia, abafada pelo ruído dos teares e pelo medo da polícia e do desemprego.

 

Foi nos dois anos lectivos, de 1961/63, que me fiz assinante do Jornal do Fundão, onde a coragem de António Paulouro fez a pedagogia democrática que manteve a esperança num 25 de Abril que ainda vinha longe.

 

Nas fábricas, o PCP lutava para se impor e nos cafés conspirava a burguesia mais culta.


No Montalto, onde pontificava o distinto advogado Guilherme Raposo de Moura, fiz o meu tirocínio político com o João Heleno, ecónomo do sanatório, o médico Sá Lima, o bibliotecário da Gulbenkian, Abel Leite da Silva, o Ernesto da Farmácia, o professor primário Barata, futuro deputado constituinte, e o Ribeiro dos Tabacos a quem a PIDE mandou retirar a representação das cervejas, primeiro, e a dos tabacos, depois, sem nunca se render. Nos anos que vieram chegaram novos democratas que o tenente Gaspar se encarregou de intimidar, os bufos de denunciar e a PIDE de prender.

 

Um pouco abaixo do Largo do Pelourinho, no Café Solneve, o Jerónimo dos Santos, o Patacho e o Teixeirinha, que a democracia viria a fazer presidente da Câmara, eram o núcleo de outro grupo anti-salazarista ligado ao primeiro por grande cordialidade a que não eram alheias as qualidades de Raposo de Moura, uma referência na cultura, no foro e na política, personalidade de cativante simpatia e enorme prestígio.

 

A escola técnica, o liceu até ao 5.º ano e o colégio Moderno, até ao 7.º, dirigido por um grande democrata, Castro Martins, constituíam a escassa oferta de ensino que contava ainda com 45 professores do ensino primário.

 

Na Covilhã, nos dois anos que ali vivi antes de rumar ao distrito de Lisboa, ameaçado de demissão pelo Director Escolar, Silva Mendes, se não abandonasse a cidade ou as companhias, com dois polícias a seguirem-me e o padre Morgadinho a denunciar-me à PIDE, apercebi-me dos mecanismos de repressão da ditadura, da cumplicidade do clero com o fascismo e da dureza da vida dos operários.

 

Da Covilhã, trouxe a enorme carga afectiva que dos 18 aos 20 anos moldaram o homem e o cidadão que jamais deixei de ser. Saí da Covilhã compelido pelos biltres da ditadura mas a Covilhã nunca mais saiu de mim. Ainda hoje, quase meio século volvido, recordo numerosos amigos, muitos já falecidos, mestres da escola técnica, docentes de todos as instituições de ensino, taxistas, prostitutas, barbeiros, engraxadores, o Artur Campos, proprietário do Montalto que mandava ao primeiro andar um empregado avisar-nos da presença da polícia, e, sobretudo, os meus alunos que apareciam na escola dos Penedos Altos, com sono e fome, vindos das Lameirinhas, Borralheira e Lameirão.

 

Recordo o Leal, o ardina que uma noite me guardou, sob a camisola, o jornal habitual que, à largura de toda a primeira página, anunciava em letras garrafais um título em caixa alta: «Ontem reuniu a Assembleia Nacional para apreciar as contas gerais do Estado relativas ao ano findo». A ausência de um «t», nas contas, pôs o país a rir e a polícia a confiscar o diário mas o Leal, fiel e cúmplice, guardou um exemplar para o cliente de todos os dias.

 

A Covilhã, urbe que 350 metros de altitude separam da base até ao topo, a caminho das Penhas da Saúde, ansiosa por chegar à Torre, a serpentear a Serra da Estrela, tem velhas tradições democráticas. Foi um alfobre de gente que aprendeu na ditadura os caminhos da resistência, é hoje uma cidade de 140 anos na vanguarda do progresso a desafiar a interioridade e a vencer a batalha do desenvolvimento.

 

22 de Outubro de 2010  |  Autoria Carlos Esperança  

http://www.diariodeunsateus.net/2010/10/22/no-inicio-da-decada-de-sessenta-ali-na-covilha-cronica/

 

  

A Covilhã e os seus esbirros – Crónica (6570 carateres)

O tenente Gaspar andou arredio do Café Montalto depois de lhe aparecer o capitão Borda d’Água com quem servira, como sargento, no Estado português da Índia. O capitão, humilhado e perseguido, revoltara-se contra a suspensão que lhe coubera por ter sido apanhado na primeira parcela do império a desmoronar-se. O general Vassalo e Silva, demitido, assumiu com honra a rendição e a desobediência às ordens de um louco que exigia a imolação – Salazar; o brigadeiro Leitão, igualmente demitido, lamuriava-se que o general fora culpado; o capitão Borda d’Água ressentiu-se da suspensão e, enquanto cumpria a pena, juntou-se à oposição. Fazia gala em ser visto com o Dr. Raposo de Moura que era a referência. Foi nessa altura que o tenente Gaspar, ou rapaz Gaspar, como era tratado na ausência, se perfilou e lhe fez a continência, à entrada do Café. Ao responder ao cumprimento perguntou-lhe como é que um tipo tão burro tinha chegado a tenente, assim mesmo, por estas palavras, ditas à frente dos da oposição. Varreu-se-lhe o sorriso e sumiu-se o tenente por uns tempos.

 

Arredado do Café não deixou de confiar ao Trinta e Cinco e ao Vinte e Três –dois agentes da PSP que espiavam à paisana – a vigilância e a intimidação dos que ele próprio tinha por desrespeitadores da ordem e o padre Morgadinho por não tementes a Deus. E havia, claro, quem os afligisse com os dois defeitos acumulados. O desamor ao sr. Presidente do Conselho era o sintoma mais evidente do desrespeito, no que se referia à ordem, e, em relação a Deus e à sua Igreja, o diagnóstico era facilitado pela escassa piedade e o absentismo aos sacramentos. O crime e o pecado, a desfaçatez e a heresia moravam juntos, tão apegados como o polícia e o eclesiástico na luta pela dissuasão. Também não faltariam ao tenente informações da PIDE e dos seus esbirros, mas destes não constava a identidade. Ele e o padre eram os dois pilares da ordem, serviçais úteis, desprezados pelos próceres da ditadura, mas temidos pela generalidade dos cidadãos.

 

O Trinta e Cinco carpiu-se um dia, o senhor professor sabe, nós somos pais, eu não sabia, há de compreender, não compreendia, notava-lhe apenas o acanhamento e a insegurança, a minha filha não é grande aluna, dava-me jeito que passasse, podia ajudar-me, é amigo dos professores, ela a desenho passa, a francês não, se o de matemática e o de português lhe dessem nota, a de ciências disse que também, era um grande favor, e ali continuava a ganir e eu a dizer-lhe que ia ver, para me livrar, ele a dizer-me o nome e o número, o ano e a turma, não se esqueça, faz favor de desculpar, fico-lhe muito agradecido, boa noite senhor professor. Até amanhã – disse-lhe eu.

 

No dia seguinte, por um acaso que não saberia explicar, falei ao Alberto Martins que consultou a caderneta, falhou a equação, acertou a raiz quadrada, decidiu passá-la. Animado, perguntei ao Martinho como é que a miúda ia a Português, não ia bem, podia dar-lhe nota, mas isso é chantagem, não é, é um pobre diabo na condição de pai, a criança não tem culpa de ser filha, vou passá-la. Assegurei-me de que era irrevogável a decisão e, nessa noite, aliviei-o, a filha ia passar, agradeceu o pai, estava envergonhado o polícia, via-se que não acreditou, muito obrigado, mas isso é mesmo verdade, perguntou, já lhe disse que sim, resmunguei, até amanhã.

 

Quando saíram as notas e a miúda passou, o polícia, deixado sozinho pelo colega, disse-me com lágrimas de pai: “Os senhores são nossos inimigos, mas têm melhor coração do que os nossos.” Presumo que se referiu aos amigos. E lá passou a miúda que anos mais tarde seria conhecida como uma das filhas do Trinta e Dois, assim designadas logo que deixaram desfrutar as primícias que na gíria se conhecem pelo número que maldosamente era subtraído ao que na polícia coubera ao pai ou, apenas, por quem não gostava dele ou delas.

 

A partir daí, passou a informar-me o Trinta e Cinco de quem era o polícia destacado para a entrada da quinta do João Heleno, ecónomo do sanatório, onde às segundas-feiras, na época própria, nos reuníamos à volta das sardinhas vindas diretamente da Figueira da Foz. Trazia-as o Jerónimo dos Santos, correspondente do Jornal do Fundão, agente de seguros, homem bom e generoso, conhecido por Lança-chamas, pelo ar afogueado, voz tonitruante e corpo substancial. Comecei a anunciar previamente o polícia de turno que iria fazer o inventário dos comensais até que o João Heleno, intrigado, me intimou a dizer como sabia. Lá lhe desvendei o segredo, perante todos. Não se conteve e contou que também ele sabia pelo Vinte e Três, a quem colocara uma cunhada no sanatório, como criada, e que retribuía a esmola de igual modo. Rejubilaram todos e o Ribeiro dos Tabacos pôs o sorriso bom que exornava o velho espírita que sob a lapela do amplo casaco trazia uma efígie de Salazar, espírito das trevas que – segundo alegava – fora enviado para castigar Portugal por ter consentido a inquisição e a monarquia, espírito que seria libertado e de quem nos libertaríamos. Andaria ali à espera da libertação. A do carrasco demorou, a nossa ainda mais.

 

Neste grupo falava-se com frequência do Rolim, da Guarda, informador da PIDE, sinistramente famoso. Com medo e em surdina. Não é que esse Rolim se havia de envolver num processo de emigração clandestina e recorrer aos serviços do Dr. Raposo de Moura, na Covilhã? Apresentou-se-lhe como o Rolim, da Guarda, e o advogado disse-lhe que, com esse nome e da Guarda, só conhecia um filho da puta que era da PIDE, que ele logo confirmou ser o próprio, deixando o advogado sem palavras nem margem para recusar a causa. Acabaria a receber os honorários em informações.


Nessa altura, corria o ano de 1962, extinguia-se nas escolas primárias o som da cantoria que desde 1954 precedia a saída das aulas:

 

a.… a.… a... – Heróis de Dadrá; e.…e.…e… – Lutai pela fé; i.… i.… i… – Nagar Aveli; o.… o.…o… – Goa não está só; u.… u.… u... – Abaixo o Nerú.

 

As cordas do nacionalismo começavam a perder elasticidade. Dos noticiários da Emissora Nacional iria desaparecer a voz soturna que declamava:

 

Os sinos da velha Goa e as bombardas de Diu serão sempre portugueses, (ouvia-se o som de disparos de canhão, seguidos de música) ...para logo se cantar “Goa é nossa, Goa é nossa e Damão de o ser se preza...”.

 

Era já com algum desespero que, com a guerra colonial em curso, antes das notícias censuradas, a voz de um tal Ferreira da Costa caía na sopa dos portugueses com “Aqui Luanda...” que a maioria se habituou a entender como “aquilo anda...”. A seguir anunciava-se que “Rádio Moscovo não fala verdade” e começaram a referir-se os nomes dos “mortos ao serviço da Pátria”. A angústia vivia-se em silêncio enquanto eram difundidas as notícias que não atentavam contra a ordem, a moral e os bons costumes.

 

As orações entraram em alta num país já com elevados índices de consumo. Por todo o lado se rezava pelos soldados que defendiam a civilização cristã e ocidental e se execravam os infames, vis e cavilosos atos perpetrados pelos inimigos da Pátria a soldo de Moscovo. Os adjetivos ficaram na memória pela ordem que os refiro, mas, tal como as rezas, foram perdendo eficácia. As orações pelos governantes foram de consequência duvidosa, assegurando-lhes longa vida, é certo, mas sem os iluminar no entendimento, como era intenção.

 

A Covilhã era uma cidade que se destacava na luta contra o fascismo, uma das poucas com marcadas tradições democráticas no interior do País. Dos operários não era de estranhar o comportamento, mas, até em industriais, era frequente encontrar quem não considerasse a ditadura uma bênção, tal como entre professores, elementos das profissões liberais e outros. Era notório que o regime gozava ali de pouca estima e os serventuários de sólido desprezo e, por consequência, eram os oposicionistas credores de um enorme afeto prodigalizado por pessoas das mais diversas condições.

 

27-06-2003 (JF) – In Pedras Soltas (esgotado) – Ed.2006 – Ortografia atualizada